domingo, setembro 12, 2004

Quem são os terroristas?

O 11 de Setembro de 2001 representará sempre uma das etapas para a globalização do terrorismo, e é a partir dessa data que foi perdida a inocência do humano, a perda da vergonha em relação ao próximo, como pessoa de direito universal, quer seja adulto ou criança, como que o começar da saga do paraíso perdido.

Reproduzo o artigo abaixo alusivo à esta trágica data que já fui encontar em site espalhado pela net.


O Islão e o Terror

Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sábado, 11 de Setembro de 2004

"Finalmente, alguém no mundo islâmico pôs a mão na consciência e ousou dizer alto a terrível verdade: "Todos os terroristas do mundo são muçulmanos." O autor desta frase, tão verdadeira quanto cruel, não foi (ainda) algum imã, algum dirigente religioso islâmico, mas sim um "civil": o jornalista Abdul-Rahman al-Rashed, director da televisão Al-Arabya e colunista do jornal "Ashark al-Awsat". Seguramente que al-Rashed irá passar por traidor entre os círculos religiosos e grande parte do mundo árabe e muçulmano, tanto mais que à constatação de facto ele acrescenta uma justificação que contém em si mesma a condenação moral da sociedade islâmica de hoje: "Os nossos filhos terroristas são o produto final da nossa cultura corrompida."

Manda a verdade que se diga que nem todos os terroristas, rigorosamente, são muçulmanos: Israel pratica, com a justificação da autodefesa, uma forma de terrorismo que, nem por ser aprovado e executado ao nível do Estado, deixa de o ser também. O terrorismo político, social e securitário de Israel constitui ainda hoje, aliás, a fonte de legitimação do terrorismo muçulmano aos olhos de uma crescente comunidade de crentes do islão. Reconhecesse Israel, sem subterfúgios de qualquer espécie, o direito dos palestinianos de viverem numa pátria livre e viável, a par do seu próprio direito de viver em fronteiras seguras, e grande parte das justificações políticas ou teológicas do terrorismo islâmico cairia por terra, no mesmo dia.

À parte, porém, a excepção importante de Israel, o que os factos mostram é que desde o assalto de um comando palestiniano à aldeia olímpica israelita, nos Jogos de Munique - uma espécie de "acto fundador" do terrorismo moderno - até ao massacre de Beslan, sábado passado, toda esta desumana barbárie que nos vamos tragicamente habituando a viver tem sempre, na sua génese e na sua autoria, a assinatura de gente que se reclama dos ensinamentos do Corão e das "fatwas" do clero islâmico. Vai um pequeno passo daí até podermos concluir que o mal está no islão, naquilo em que ele se transformou e naquilo que, acima de tudo, ele representa hoje em dia: uma escola de intolerância, ressentimento e ódio, devotada ao ressurgimento de um espírito de cruzada contra os "infiéis", que remete a humanidade para um mundo medieval e obscurantista, onde o serviço de Deus, fosse Ele cristão, muçulmano ou hindu, justificava toda a espécie de crimes. Em nome de Deus, o catolicismo promoveu ou legitimou, sucessivamente, as Cruzadas, a Inquisição, a exterminação dos índios das Américas, a perseguição e a intolerância dos missionários da Índia contra os "gentios" e o tráfico de escravos de África. E, no fim, não foi nenhum movimento redentor, nenhum acto de contrição nascido dentro da própria Igreja Católica, que veio deslegitimar a barbárie e o arbítrio em nome de Deus: foram as ideias da Revolução Francesa, a proclamação dos Direitos do Homem, os movimentos civilistas que finalmente se impuseram no Ocidente às sociedades civilizadas.

É justamente o que não se vê existir hoje no mundo islâmico e, em particular, no mundo árabe: um movimento civilista, o triunfo do homem, da ciência e do progresso sobre o fanatismo religioso. O que outrora fez o esplendor da civilização árabe parece ter sucumbido para sempre na trágica rendição de Granada, como se em 1482 não tivesse caído apenas uma cidade, mas verdadeiramente toda uma civilização. Hoje, sentados sobre os lençóis de petróleo de que depende a sustentação económica do Ocidente, tanto parece bastar aos árabes para justificar a sua superioridade. Mas, em todos os domínios que caracterizam as sociedades evoluídas do nosso tempo - a saúde, o sistema de ensino, o domínio das tecnologias modernas, o sistema de segurança e protecção social, a produtividade do trabalho, a tributação fiscal e o exercício inteiro da cidadania -, não há uma só contribuição que não tenha origem no Ocidente. Quer sigam ou não à risca os mandamentos da sua religião, sempre e sempre invocada, quer respeitem ou desprezem os valores do Ocidente, todos os dias há multidões de cidadãos de países muçulmanos que tentam atravessar o estreito de Gibraltar para Espanha, que tentam emigrar da Argélia para França, da Turquia para a Alemanha, do Paquistão para Inglaterra ou da Palestina para os Estados Unidos. Não vão apenas à procura de trabalho e de condições materiais de vida dignas - que é uma vergonha não encontrarem nos seus países de origem -, mas vão também à procura de tudo o que lhes pode oferecer uma sociedade livre e laica. E é por isso que não existe o movimento contrário: que, mesmo os ocidentais fascinados com o mundo árabe, como eu próprio, não estão dispostos a trocar o modo de vida em que se funda a sua cultura e os seus valores por um outro mundo onde quem manda em nós, na nossa casa, nos nossos hábitos, na nossa família e no nosso país são uns guardiões de um texto dito sagrado, escrito por um Profeta há mais de mil e quinhentos anos, e destinado a povos nómadas do deserto e a sociedades que ou já não existem ou há muito deveriam ter deixado de existir.

É preciso que não haja confusão nem pudor algum sobre isto: nós temos razão e eles não. O quinto mandamento dado a Moisés, "não matarás!", é o que distingue os homens dos assassinos. A liberdade individual é infinitamente mais justa e própria da condição humana do que o cumprimento das "verdades" reveladas no código penal medieval que é o Corão. O Estado laico é o único que assegura a liberdade e a dignidade da pessoa, face ao arbítrio e ao obscurantismo do Estado religioso. Deus é um assunto e uma vontade individual de cada um, inalienável a favor do Estado, da escola ou de intermediários autonomeados.

Na última edição da PÚBLICA vem uma entrevista feita por Paulo Moura ao marroquino-francês Thami Bréze, presidente da UOIF, a maior organização muçulmana actuante em França. O objectivo que ele diz pretender é conciliar os valores do islão com os da República Francesa. Ora, isto é, em si mesmo, impossível, contraditório e deve levar-nos a desconfiar e a ficar imediatamente alerta: trata-se de um cavalo de Tróia. Não há convivência possível entre os ensinamentos do Corão e os valores civilistas de 1789. Repare-se, por exemplo, como ele coloca a questão do uso do véu islâmico: as raparigas muçulmanas têm a "liberdade" de o não usar, mas, se quiserem seguir a "verdade" que lhes é ensinada nas escolas corânicas e dentro de casa, têm de o usar - ou seja, resta-lhes a liberdade de poderem trair, porque a verdade, essa, há-de permanecer imutável para sempre.

Mas Thami Bréze também sabe que o Corão é um texto datado, cuja leitura literal não faz hoje o mais pequeno sentido, mesmo para os próprios crentes. Isso torna-o, reconhece ele, um "texto muito perigoso", que requer interpretação e regras, "não se faz como se quer". Logo, "o problema é quem faz a interpretação, quem é a autoridade". Justamente: eis a fragilidade do islão. Não subsiste sem autoridade religiosa, sem clero, sem intérpretes autolegitimados da palavra divina. Só que, ao contrário do catolicismo, não existe uma autoridade suprema que fixe a melhor doutrina, não há concílios, não há encíclicas: cada escola interpreta o Corão como entende ou como melhor lhe serve para outros fins. No Irão, o "ayatollah" Khomeini interpretou-o de tal forma que, de um dia para o outro, o país regrediu cinco séculos; no Afeganistão dos taliban, o extremo chegou ao ponto de as mulheres serem proibidas de estudar, trabalhar, sair à rua e até serem atendidas nos hospitais; na Arábia Saudita, as escolas corânicas formaram os ideólogos da Al-Qaeda, e em Marrocos, na Argélia, no Egipto ou no Sudão, formam hostes de assassinos, para quem matar os próprios vizinhos e irmãos é uma forma suprema de cumprir os mandamentos do Profeta. Qual é então, afinal, a verdade única revelada pelo Corão?

Ideólogos e dirigentes como Thami Bréze, que vivem no Ocidente e beneficiam da sua cidadania, não podem, não devem acreditar e, honestamente, também não julgo que acreditem nestas visões extremas do texto sagrado. Mas não só a sua condenação do terrorismo islâmico nunca é linear ou aparece sempre mitigada - como se ele não fosse o Mal absoluto do nosso tempo - mas também a sua visão da república e da liberdade é selectiva. Em França, Thami Bréze é a favor da laicidade do Estado, "porque ela nos protege"; mas, se vivesse em Marrocos, seria seguramente contra. Em França, é a favor das liberdades republicanas de que os muçulmanos podem tirar benefício - a liberdade de expressão, de culto, de voto, de greve, de recurso judicial independente, do ensino laico nas escolas públicas - mas já não seria a favor num Estado islâmico e, mesmo em França, consente (porque não pode impedir), mas não legitima, o uso de outras liberdades como o de as raparigas não irem para a escola sem o "chador".

Porém, ao contrário do que ele defende, nós sabemos que a liberdade não é compartimentável nem fragmentária. Também Álvaro Cunhal jurava sempre defender "as mais amplas liberdades" - como se houvesse liberdade relativa. A liberdade ou é absoluta e idêntica em todas as latitudes ou não é um valor em si mesma, mas apenas um disfarce - e fatalmente provisório. É por isso que, nesta questão da proibição do uso do véu islâmico em França, e contra muitas opiniões bem argumentadas e que dão que pensar, o instinto sempre me disse que a França tem razão. O Estado de direito, o Estado republicano, deve consentir a todos o exercício do seu culto religioso, mas não deve consentir nem a ostentação de símbolos que pretendem invocar uma diferença ou superioridade em razão da religião, nem práticas religiosas que ofendem os princípios em que se funda a democracia e a república. Do mesmo modo que eu, quando vou a um país muçulmano, respeito os valores, os símbolos e as práticas aí existentes e abstenho-me de exibir ou fazer uso dos meus, de modo a poder ofendê-los.

Na sua génese, o terrorismo é uma batalha ideológica, que o Ocidente tem de travar e de vencer." - in Público



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